quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

[Contos] Dons

O mordomo Vlad caminhava, majestosamente, pelo corredor da grande mansão de "Lord" Richard. Não, Richard não era de verdade um lorde, mas era chamado assim por todos seus clientes. Richard Blake possuía, ou ao menos dizia que possuía, dons sobrenaturais. Dizia ele que não só via o futuro das pessoas, como tinha a possibilidade de alterá-lo. Abrira então um "negócio" onde ele usava este seu dom, cobrando por ele... E não era barato.
Richard tinha uma mansão que herdara de seu pai, o grande e lendário Dylan Blake. Era nela onde ele vivia sozinho, e onde recebia os clientes. Todo tipo de pessoa já aparecera ali... Os pedidos iam de "alterar os números da loteria" até impedir a morte. Neste último caso, Richard afirmava que havia feito um pacto que não permitia que ele alterasse a morte de uma pessoa, num geral.

Ele estava na biblioteca, sentado no sofá, com um livro em mãos, porém perdido em seus pensamentos... Acordou de seus devaneios ao ouvir as batidas na porta da biblioteca (Blake podia parecer simpático com seus clientes, mas Vlad, seu mordomo, e a pessoa mais íntima do "vidente" sabia quem ele era de verdade).
— Entre Vlad! — disse Blake, levantando-se do sofá.
O mordomo abriu a porta lentamente. Richard jogou o livro para o alto e fez uma cara de espanto junto com incredulidade.
— Tudo bem, meu senhor? — perguntara o mordomo, mesmo já sabendo a resposta.
— Vlad, eu já te disse que você definitivamente não parece um mordomo? — ele disse, retomando a postura.
— Sim, lorde Richard, já disse.
Vlad realmente não parecia bem com um mordomo. Ele era jovem, tinha cabelos rebeldes e vermelhos (não ruivo, vermelho mesmo) e seus olhos... Ah, seus olhos... Eram pretos, mais escuros do que a noite sem lua. Eram escuros, sem vida nenhuma. Richard muitas vezes tinha a impressão de que seu mordomo estava morto. Aqueles olhos não guardavam vida, não guardavam luz ou felicidade, mas guardavam um segredo obscuro, Richard sabia disso.
— Você poderia ser um ator, um modelo, um médico...
— O senhor está exagerando, milorde.
— ... Um psicólogo de sucesso.
— Um psicólogo? — Vlad ergueu uma sobrancelha. Dentre várias profissões "comuns", não fazia ideia do motivo de seu mestre ter dito "psicólogo".
— Bem... Acho que faz parte do meu dom, ou então estou ficando doido, mas posso ver que você tem uma aura muito extensa e colorida. Muitas emoções em um longo alcance... — Richard tagarelava, e Vlad achava cada vez mais que seu patrão estava enlouquecendo. — Você pode sentir o mesmo que alguém que esteja próximo a você sente, e pode contagiar este alguém com os seus sentimentos.
O estômago de Vlad se revirou, e ele fez uma careta de susto. Richard olhou para ele, pelo canto do olho, tentando entender o nervosismo do criado. Eles ficaram calados, se encarando por um tempo... Vlad tremia um pouco e suava. Richard decidiu mudar o clima da biblioteca.
— Hm... É uma somente uma suposição doida. Não é mesmo?
Vlad respirou fundo.
— Sim, sim, milorde, só uma suposição...
Richard notou que seu mordomo agia diferente. O que tinha acontecido com ele?
— Vlad? Você está bem?
Ele limpou o suor do rosto, e mudou suas feições para uma cara sorridente.
— Ah, é só uma... — ele abaixou a cabeça, em sinal de decepção.
Uma... ? Vamos diga, seu imbecil.
— Uma d-dor de barriga, senhor... — ele ainda não tinha levantado a cabeça, estava com vergonha. Enquanto isso Richard gargalhava sem parar.
— Só isso? Prepare um chá para nós dois, quem sabe isso ajude você. — ele soltou um risinho, de deboche. — E lave as mãos antes, por gentileza.
Vlad levantou a cabeça, e sua expressão definitivamente não era feliz.
— Claro... Milorde. Mas antes tenho que lhe informar algo que estou tentando dizer desde quando entrei aqui. — Richard manteve-se em silêncio, mas moveu a cabeça, num sinal para que ele continuasse. — Bem, é comum nos negócios existirem concorrentes... E por mais que a chance fosse mínima, estão surgindo concorrentes para nós também, milorde.
Richard mordeu o lábio inferior, com raiva.
— Vlad, é certo que no comércio comum existem concorrentes comuns! Nosso negócio não é algo comum, como uma loja de roupas que você pode ver a cada esquina, faz mais de três anos que somos os únicos nesse rumo por aqui... Tirando aquelas vadias que se passam por cartomantes nas ruas, mas elas mentem, e você sabe bem disso.
— Senhor, sabes que o que ocorreu com a antiga cozinheira foi algo cruel. Mesmo assim, não acho que elas sejam o nosso maior problema.
— É claro que não! A pobre Margareth... A cigana a disse que ela teria uma vida longa, onde teria muitos filhos, e então...
— ... Ao sair da cabana foi assassinada. — Vlad pronunciava as palavras num tom frio.
— Assassinada? Ela foi brutalmente torturada até que de seus olhos saíram lágrimas de sangue, e de sua boca jorravam palavras misturadas às ondas sangrentas que vazavam por ali.
— Bem senhor, voltando ao assunto... Não são ciganas de rua, mas estão dizendo que uma mulher abriu as portas de seu castelo, e está recebendo todos que desejam saber e alterar seu futuro.
— Como eu faço?
— Sim, senhor, mas dizem que seu olhar é hipnótico e seu preço é mais razoável.
— Não ligo para o dinheiro Vlad! Tampouco pros olhos desta imunda. Você como meu servo mais íntimo sabe que não "ganhei" esse dom, sabe bem o que tive que fazer...
— Mas, milorde, o senhor não acha que... — os olhos do pobre mordomo se arregalaram.
— Não tem outro jeito, Vladmir!
— Mas o espírito disse que era algo exclusivo seu...
Richard coçou o queixo.
— É, Vlad, é verdade, mas ele disse que havia uma outra forma de adquirir o mesmo dom que foi concebido divinamente a mim.
— Então, você acha que ela... — ele não ousou terminar a frase.
— É isso mesmo, Vladmir... Ela fez o pacto.

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